terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Veja a íntegra do texto medalha de ouro


 Sob um teto de estrelas

Era um fim de tarde, desses que fazem o céu assumir seu tom mais alaranjado. Deitada no pequeno sofá- encaixado milimetricamente entre duas das paredes da salinha apertada-, absorta em meus pensamentos, mal pude ouvir o som desesperado lá fora. De repente o bater na porta convida-me a sair. Parado à porta está um homem: alto, magricela, colete laranja- tal como o céu também se vestia-, careca, o bigode escuro escondendo a boca com a qual me intima:
- Senhora, o seu prédio vai desmoronar. Por gentileza, retire-se do edifício imediatamente.
As paredes além do homem mostravam-se fissuradas e desgastadas pelo tempo. Sempre passando por elas, no entanto, nunca havia me dado conta dessa situação. O teto parecia apenas aguardar, cordialmente, a saída dos seus protegidos. O chão, tentando resistir, bravamente, à erosão, não obtinha sucesso. Nada se ouvia além do choro, do desespero, da agonia. As cores, em substituição ao laranja, agora se faziam vermelho e azul e dançavam agitadas aos gritos desesperados e inquietos das sirenes sobre os automóveis lá embaixo. Tentei correr, pegar as coisas que me valiam, mas logo fui impedida pela mão do homem que segurava meu braço enquanto dizia:
- Senhora, não há tempo. Pela sua segurança, retire-se do prédio.
Pernas trêmulas, olhos marejados. Desci cada degrau das escadas relutando com a realidade que me fissurava, me marcava como cada uma das paredes. Elas estavam marcadas pelo tempo; eu, pela ausência dele. Câmeras, microfones, repórteres, curiosos. No pátio, colchões, crianças, fogões, geladeiras, animais, cadeiras, mulheres, todos brigavam igualmente por um espaço no caminhão de mudanças.
Olhei para a rua que sempre me abrigara nas noites de tédio, quando o sofá era, por qualquer ângulo, desconfortável e as conversas nos tamboretes eram mais instigantes. Ela agora se mostrava acolhedora, como uma mãe, e imensa. Sem Chão, Sem Teto (e, se isso indica alguma ambiguidade ao leitor, está no caminho certo). Os outros edifícios, abandonados ou não, cercavam-me como paredes. Sem laranja. As cores agora assumiam seu tom mais escuro. O azul e o vermelho recusavam-se a sumir.
Sentei-me num meio fio e esperei atenta. Na pequena “pracinha verde”, as senhoras conversavam aflitas sobre a tragédia. A feira da sulanca, emprestada gentilmente pela festiva cidade de Caruaru (e ficam aqui os meus sinceros agradecimentos), que alegrava umas noites intercalares desse pequeno lugar, foi obrigada a dividir a atenção de seus contempladores com o tal edifício, que não saía da boca do povo. Eu, ainda impactada, ouvia ecoar as palavras que jorravam da boca de Miró, o poeta da Muribeca, que chorava, pedia, implorava pelo simples direito de seus irmãos de terem um lar.
E não se ouvia falar em mais nada. Cada morador narrava sua versão do enredo. Quem dera fosse só o meu enredo, ou que se limitasse aos que me acompanharam nele. A história se repetiu, a história se repete em cada edifício do pequeno Conjunto Muribeca, um bairrozinho do “Berço da Pátria” e quase invisível diante de um “Leão do Norte”, mas que ainda ostenta em letras garrafais as boas-vindas aos seus visitantes, aos moradores e àqueles que tentam ficar, pois em terra de Muribeca quem tem casa é Rei, mas há sempre um cantinho velho para um desabrigado.

Lívia Santos

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