Sob um teto de estrelas
Era um fim de
tarde, desses que fazem o céu assumir seu tom mais alaranjado. Deitada no pequeno
sofá- encaixado milimetricamente entre duas das paredes da salinha apertada-,
absorta em meus pensamentos, mal pude ouvir o som desesperado lá fora. De repente
o bater na porta convida-me a sair. Parado à porta está um homem: alto,
magricela, colete laranja- tal como o céu também se vestia-, careca, o bigode
escuro escondendo a boca com a qual me intima:
-
Senhora, o seu prédio vai desmoronar. Por gentileza, retire-se do edifício
imediatamente.
As
paredes além do homem mostravam-se fissuradas e desgastadas pelo tempo. Sempre
passando por elas, no entanto, nunca havia me dado conta dessa situação. O teto
parecia apenas aguardar, cordialmente, a saída dos seus protegidos. O chão,
tentando resistir, bravamente, à erosão, não obtinha sucesso. Nada se ouvia
além do choro, do desespero, da agonia. As cores, em substituição ao laranja,
agora se faziam vermelho e azul e dançavam agitadas aos gritos desesperados e
inquietos das sirenes sobre os automóveis lá embaixo. Tentei correr, pegar as
coisas que me valiam, mas logo fui impedida pela mão do homem que segurava meu
braço enquanto dizia:
-
Senhora, não há tempo. Pela sua segurança, retire-se do prédio.
Pernas
trêmulas, olhos marejados. Desci cada degrau das escadas relutando com a realidade
que me fissurava, me marcava como cada uma das paredes. Elas estavam marcadas
pelo tempo; eu, pela ausência dele. Câmeras, microfones, repórteres, curiosos.
No pátio, colchões, crianças, fogões, geladeiras, animais, cadeiras, mulheres,
todos brigavam igualmente por um espaço no caminhão de mudanças.
Olhei
para a rua que sempre me abrigara nas noites de tédio, quando o sofá era, por
qualquer ângulo, desconfortável e as conversas nos tamboretes eram mais
instigantes. Ela agora se mostrava acolhedora, como uma mãe, e imensa. Sem
Chão, Sem Teto (e, se isso indica alguma ambiguidade ao leitor, está no caminho
certo). Os outros edifícios, abandonados ou não, cercavam-me como paredes. Sem
laranja. As cores agora assumiam seu tom mais escuro. O azul e o vermelho
recusavam-se a sumir.
Sentei-me
num meio fio e esperei atenta. Na pequena “pracinha verde”, as senhoras conversavam
aflitas sobre a tragédia. A feira da sulanca, emprestada gentilmente pela
festiva cidade de Caruaru (e ficam aqui os meus sinceros agradecimentos), que
alegrava umas noites intercalares desse pequeno lugar, foi obrigada a dividir a
atenção de seus contempladores com o tal edifício, que não saía da boca do
povo. Eu, ainda impactada, ouvia ecoar as palavras que jorravam da boca de
Miró, o poeta da Muribeca, que chorava, pedia, implorava pelo simples direito
de seus irmãos de terem um lar.
E
não se ouvia falar em mais nada. Cada morador narrava sua versão do enredo.
Quem dera fosse só o meu enredo, ou que se limitasse aos que me acompanharam
nele. A história se repetiu, a história se repete em cada edifício do pequeno
Conjunto Muribeca, um bairrozinho do “Berço da Pátria” e quase invisível diante
de um “Leão do Norte”, mas que ainda ostenta em letras garrafais as boas-vindas
aos seus visitantes, aos moradores e àqueles que tentam ficar, pois em terra de
Muribeca quem tem casa é Rei, mas há sempre um cantinho velho para um
desabrigado.
Lívia Santos
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