Por Ricardo Braga
Neste agosto de 2012 a algarobeira apareceu frutificando como se fora final de estiagem. Mas foi só uma pegadinha do clima no calendário biológico da planta, acostumada passar quatro meses sem chuva para depois florar e já no período brabo de seca espalhar suas sementes. Pudera, no primeiro semestre quase não choveu, embora fosse o período em que normalmente as águas molham a terra e as plantas da caatinga se vestem de verde.
A seis quilômetros do rio, encontrei um morador chegando em casa com a carroça cheia de capim para o gado e água para beber. Vinha do Capibaribe. Pergunto pela água do barreiro no sítio. Responde que é a primeira que acaba e que, enquanto ela dura, não vai buscar tão longe. Mas agora “até a água que eu guardava na cisterna construída pelo governo acabou e os caminhões do Exército nem passaram por aqui ainda”. Daí, para ele só resta buscar onde tem, com a convicção de que “abaixo de Deus só o Capibaribe é quem salva”.
Mas como, se lá já não tem água? “É que o senhor não vê; ela está dentro da areia”. Mesmo seco, sem vazão, aquele leito sustenta o homem da região porque debaixo dele estão guardadas chuvas passadas, como numa enorme cisterna natural, com a água protegida da evaporação e sem fugir para o mar.
Volto ao rio e caminho quilômetros por suas margens e leito. Na aluvião, o capim ainda cresce e é cortado para o gado, e a cada propriedade ribeirinha se vê pelo menos um poço redondo em alvenaria, escavado a pá. Por essas cacimbas na zona rural de Santa Cruz do Capibaribe, o rio salva o homem do campo e, por vezes, o da cidade, que se abastece delas mobilizando carros pipa. Afinal, neste município chove bem menos do que a média anual do semiárido nordestino.
Mas existe um outro incômodo na população, que não é climático. Ao longo do trecho acima da cidade até a barragem de Poço Fundo, que já está seca, a exploração de areia tem tirado o sossego de muita gente. Para uma moradora vizinha à extração, a narrativa do trauma chega a ser poética porque pode haver poesia até na dramaticidade se ela for carregada do sentimento de natureza.
Perguntei o que significavam para ela aquelas máquinas comedoras de areia e o transtorno decorrente: “Veja, há poucos meses meu marido curtia olhar os canários ao sol que pousavam próximo à nossa casa enquanto eu gostava de acompanhar os saguins do outro lado da estrada, na beira do rio, onde existem fruteiras e árvores nativas cuidadas por nós com sacrifício. Com o barulho das máquinas, os saguins assustados atravessaram a estrada e passaram a destruir os ninhos e comer os filhotes dos pássaros. Hoje já não temos canários por perto!”.
Que simplicidade de argumento, que poderia convencer sem a necessidade de racionalidades técnicas sobre disponibilidade e demanda hídrica! Mas sei que nem todos seguem essa lógica.
Por isso, caminho, com outros mais, buscando entender a importância daquele leito seco, silencioso, mais importante para a vida do que para a construção civil. Até porque existem outras jazidas e materiais em alternativa àquela areia, disposta por centenas de anos de aluvião, sendo quase covardia explorá-la assim, de forma tão rude, diante da própria inocência da sua disposição, desprotegida. Em leito aberto, não resiste à exploração apressada e desestruturadora do ambiente pela mineração mecanizada, que afronta a relação homem-natureza do lugar.
Da mesma maneira que no Sertão as plantas da caatinga deixam cair suas folhas para não perder água enquanto transpiram, o leito do rio imita a vida no limite crítico da sobrevivência, deixando-se nu de água por fora, para retê-la o quanto pode por dentro.
Imaginando o seu perfil por baixo da areia, a rocha dura forma uma bacia de acumulação de grande extensão, aflorando em determinados trechos do leito justo quando as pedras aparecem e funcionam como impedimento à passagem da água rio abaixo, ficando acumulada nos poros do solo arenoso.
A escavação e a retirada da areia na mineração descobrem a água, deixando-a exposta à evaporação, que na região é de aproximadamente 2.500 mm/ano. Ou seja, um espelho de água com 1m2 perde 2.500 litros de água para a atmosfera em um ano. E se isso ocorrer em 1 km de rio com seus 80 m de largura? Significam 202 milhões l/ano, o que corresponde ao consumo doméstico anual de uma população rural de 8 mil moradores.
Mas não é só isso. O espelho d´água, exposto ao sol, favorece a reprodução de microalgas, algumas tóxicas, que, ao morrerem por falta de oxigênio durante a noite, terminam por estragar a água e inviabilizá-la para consumo. Por isso é que a sabedoria popular diz que água parada por muito tempo não é boa.
Sem água, sem rio, sem pássaros, sem o verde sobre a areia. Destruída a grande cisterna natural, a razão de permanência no campo se esvai. E a cidade espera novos migrantes para consumir mais água, de onde?
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